segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Apego: uma traição para a alma?

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“A Alma Imoral” do rabino Nilton Bonder, livro, que também foi adaptado para o teatro, traz à tona reflexões sobre aspectos da existência do ser humano que fundamentam o seu ser e estar no mundo como conhecemos. Por meio de regastes históricos, o autor nos leva a uma viagem por um passado bíblico, sob a perspectiva da tradição judaica, e científico representado na teoria evolucionista de Darwin. 

A partir destes dois pilares, a obra caminha em direção a dois pontos centrais: o corpo e a alma. De acordo com o autor, corpo e alma são duas forças opostas que se complementam. O primeiro representando a materialidade e a segunda, a imaterialidade. Assim, enquanto corpo, produto de um passado, atenta para a preservação das tradições como forma de dar continuidade à espécie, a alma carrega em si a predisposição para transgredir, trair. O propósito a ser alcançado por ambos, no entanto, é o mesmo: a imortalidade.        

A Bíblia e a teoria da evolução, segundo Bonder, compreendem de maneiras distintas a existência humana e os preceitos que a conduzem. Na concepção bíblica escreve ele, o homem tem acesso à dimensão de si e de sua natureza transgressora. A finalidade de seu existir, portanto, não é somente a procriação, mas também a transcendência, papel cumprido pela alma que é movimento, mudança. Essa característica transgressora da alma a faz imoral. É por meio da dessa transcendência que a alma busca a eternidade. Já o que fundamenta a teoria da evolução, de acordo com o autor, é o conceito de que é o corpo o responsável pelo comportamento e pelas ações do homem, um animal moral. O desejo primeiro desse corpo dotado de moralidade é a multiplicação. Nesta matriz, procriar é, para o homem, se aproximar da imortalidade.

Ao apresentar um cenário em que se dialoga sobre o despertar da consciência e a descoberta do nu, a tradição e a transgressão, a moralidade e a imoralidade, a traição e o apego, Bonder coloca o leitor diante de um trabalho interior de análise e questionamentos sobre a complexidade da existência humana. 

A reflexão proposta por Bonder em sua obra é uma provocação a tudo aquilo que conhecemos sobre o assunto. É um desafio bastante pertinente ao momento que vivemos. Um contexto onde tudo muda o tempo todo. Ao nos debruçar sobre as páginas de “A Alma Imoral” temos a oportunidade de olhar a vida por outro lado.  Segundo o autor, o ser humano é a tensão entre o corpo e a alma, ou seja, entre a preservação e a transgressão. Dentro deste universo podem acontecer duas formas intensas de desequilíbrio, que são a traição e o apego.

É grande relevância tentar compreender a dimensão que esta questão, do apegar-se e do trair, abrange. Conhecer mais sobre estes dois aspectos inerentes ao corpo e a alma, além de ser muito interessante, faz-se necessário para ampliarmos a visão que temos sobre o assunto. 

Não nascemos prontos para a vida, nem aprendemos sozinhos, mas com aqueles a quem chamamos de família ou àqueles que nos cuida quando crianças. Em outras palavras, nossa condição humana nos faz dependentes um do outro para existir, sobreviver e nos perpetuar. Na busca pela eternidade, de acordo com o livro, se encontra o sentido das ações do corpo e da alma. Desta forma, o apego às pessoas, aos ensinamentos, tradições e valores que elas nos transmitem, ao longo da vida, torna-se inevitável. No entanto, deparamo-nos constantemente com situações que nos colocam em descompasso com tudo isso que foi aprendido.   

A vida acontece implacavelmente dentro desse universo, de certa maneira, “trágico” e paradoxal. Ninguém está isento desses dois fatores: o apego e a traição. E o mais fantástico, escreve Bonder, é que eles estão sempre juntos. Nas palavras do autor, “não existe experiência de traição que não venha acompanhada de apego”.  

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

As belezas da Serra do Cipó

Juquinha, uma das lendas da região
Já era noite quando chegamos à pousada das Bromélias, na Serra do Cipó, em Minas Gerais. Ansiávamos por conhecer as maravilhas da região. Cachoeiras, trilhas, Estátua do simpático Juquinha, Bar do Zeca e Fazenda Cipó Velho compunham o roteiro. Para que você, caro leitor, entenda melhor sobre este lugar incrivelmente lindo vou contar um pouco de sua história. Deixo aqui também minha percepção do que vi, senti e guardei deste pedacinho de paraíso.


O porquê do nome

Fazenda Cipó Velho
A expressão Serra do Cipó é usada desde o século XIX e apareceu pela primeira vez a partir do estabelecimento da Fazenda Cipó pela família Moraes. Até 2003, o distrito de mesmo nome, que pertence ao município de Santana do Riacho, ao sul da Serra do Espinhaço, denominava-se Cardeal Mota.

Serra do Cipó- MG
Há algumas versões para a origem no nome. A mais aceita o relaciona às curvas do rio Cipó que nasce encachoeirado, desce a serra e segue em curvas por uma grande baixada arenosa. Após esse percurso, ele se torna pedregoso, mas continua encachoeirado e serve de moldura para as corredeiras da Cachoeira Grande. Outra possibilidade associa o nome à quantidade de cipós nos cerrados, matas secas e vegetações da região.



Serra do Cipó- MG 
Alguns estudiosos acreditam que “cipó” era um modo errado de se falar e escrever “iapó”. A expressão em tupi-guarani quer dizer “rio que alaga” e era o nome de um rio situado ao norte do Paraná. Entre os séculos XVIII e XIX era grande o tráfego de tropeiros na área correspondente ao sul do país e Minas gerais. O rio Cipó possuía grandes várzeas de inundação que quando alagavam deixavam os tropeiros ilhados, já que não havia pontes. De tanto ser repetido, o nome cipó acabou ganhando autenticidade.

Breve histórico da região

Serra do Cipó- MG
Os contornos bem desenhados da Serra do Cipó foram amplamente usados como itinerário pelos bandeirantes paulistas que iam de São Paulo a Minas Gerais em busca de ouro e pedras preciosas. Seguiam pela Vila do Serro Frio, hoje, município do Serro e Arraial do Tejuco, atual cidade de Diamantina. Há indícios de que homens primitivos viveram ali. As marcas de pinturas rupestres encontradas em várias grutas e paredões atestam sua presença na região há mais de 12 mil anos. Devido a isso, segundo estudos, o acervo ganhou status de importante sitio arqueológico.O lugar ainda guarda vestígios de uma antiga estrada de pedras construída por escravos no período da colonização, atual Trilha dos Escravos. Por esse caminho passavam os tropeiros com suas mulas abarrotadas de ouro.

Durante o século XIX, viajantes da Europa, atraídos pelas lindas e ricas paisagens naturais da região, percorreram-na, a fim de conhecer e estudar sua fauna e flora. Por volta dos anos 50, após as realizações das primeiras conferências de turismo e da publicação de reportagens e estudos, mostrando sua beleza singular, Serra do Cipó começou a ser apresentada como ponto turístico. Há trabalhos científicos de importantes estudiosos, como Peter W. Lund e Eugene Warming e Saint Hilarie sobre o inestimável valor da região. Além da flora, destaca-se também a qualidade das águas.

O Parque Estadual da Serra do Cipó foi criado em 1975 e já em 1984, por conta de sua biodiversidade, tornou-se Parque Nacional e abrange uma área de 27.600 hectares. As Justificativas para a concepção do parque foram: a proteção da fauna e da flora; proteção da bacia de captação do rio Cipó e a preservação do cenário local, como cachoeiras, paredões de escaladas e trilhas.

O que experimentei

Fazenda Cipó Velho
Pois bem, viver é aventurar-se. Há várias formas de praticarmos este verbo e uma delas é por meio da viagem. Paisagens misturadas a tantas vozes, cantorias, olhares, sorrisos e gargalhadas em forma de recortes congelam na nossa memória. É como uma fotografia que não se pode rasgar, deletar, e que jamais amarela com o tempo porque é uma fotografia imaterial. Um retrato de momentos vivenciados, interpretados e guardados de diferentes maneiras nas lembranças de cada um. Cada espaço visitado, cada pequeno caminho trilhado, cada som de passarinho, de cachoeira derramando, cada sensação vivida ajuda-nos na construção de nosso “acervo” psicológico, intelectual e emocional.





terça-feira, 24 de setembro de 2013

Um dia em Inhotim


Inhotim, MG
O tempo era instável no dia do passeio. E assim, entre um chuvisco e outro, fomos apresentados às maravilhas de Inhotim. Um lugar paradisíaco, inspirador, lindo. Ali, a bela paisagem, os sons, o cheiro de natureza, o sabor das ervas que só conhecemos desidratadas como o orégano, a hortelã, o manjericão e até o adoçante aguçam nossos sentidos.
O instituto Inhotim é um dos mais importantes espaços de arte contemporânea do mundo e fica nos arredores de Brumadinho, em Minas Gerais. Foi Idealizado pelo empresário Bernardo Paz, por volta de 1980. Mais tarde, recebeu colaborações do paisagista Roberto Burle Marx. Hoje, mais de três décadas depois, o lugar seduz pela beleza de seu rico acervo Botânico, composto de plantas raras, além de obras de arte.
O acervo artístico que abrange esculturas, instalações, pinturas, desenhos, fotografias, filmes e vídeos, conta com cerca de 500 obras de mais de 100 artistas de 30 nacionalidades distintas.
Neste espaço, o visitante escuta o som da terra
As obras permanentes foram produzidas em grande parte sob o conceito de site-specific, que se refere a obras criadas conforme o ambiente e em local determinado. Assim, o artista ao ser convidado para desenvolver um projeto em Inhotim, considera as características naturais e culturais do lugar. As obras ficam Expostas ao ar livre, nas quatro galerias: lago, fonte, mata e praça, e em ambientes fechados.

A arte de Adriana Varejão

Uma das galerias visitadas foi a da artista plástica Adriana Varejão, que é hoje um dos nomes mais importantes da arte contemporânea. Ela participou de mais de 70 exposições nacionais e internacionais, como Bienal de São Paulo, Tote Modern em Londres e MoMa em Nova Iorque.
Natural do Rio de Janeiro, a artista nasceu em 1964 e, por volta dos 17 anos, frequentou a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, EVA/Parque Lage, no Rio. Sua primeira exposição individual foi em 88, na galeria Thomas Cohn também no Rio de Janeiro. A principal fonte de produção de Adriana Varejão é a pintura, mas ela também transita entre a fotografia, a escultura e a instalação. 

Panacea Phantastica
Linda do Rosário
Na produção, a artista se utiliza de variadas fontes para alcançar o resultado desejado.
Monocromatismo, violência,
história, ruína, abstração. Ela se pauta no período colonial brasileiro, como pode ser visto na pintura dos azulejos portugueses que mostra a articulação entre as culturas lusitana e brasileira. A agressividade da matéria e a presença da dor em imagens, que chocam pela semelhança com o real, estão na arte de Adriana Varejão. A artista encontra inspiração nos botecos cariocas, açougues e banheiros europeus.Na galeria em Inhotim, pintura, escultura e arquitetura trazem à tona elementos históricos e culturais nas obras Panacea Phantastica (2003-2008), Celacanto provoca maremoto (2004-2008), O colecionador (2008) e Linda do Rosário (2004). Nesta última, parte de uma parede de azulejos brancos com o interior em “carne viva”, com as entranhas a mostra, provoca as mais variadas sensações no observador. O desabamento do Hotel de mesmo nome – Linda do Rosário -, no Rio de Janeiro, em 2002, quando um casal foi encontrado morto sob as ruínas das paredes azulejadas, serviu de inspiração para o trabalho. Panacea Phantastica: trata-se de um conjunto de azulejos com imagens de 50 tipos de plantas alucinógenas de diferentes partes do mundo. A obra, que foi criada de forma a se adaptar a qualquer arquitetura, tornou-se um banco e fica na entrada do pavilhão, num espaço que serve, ao mesmo tempo, para contemplação e convivência. Um texto em um dos azulejos faz uma analogia entre efeitos alucinógenos das plantas e alterações na percepção causadas pela arte.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Unindo música e cidadania, projeto social transforma a vida de crianças e adolescentes da periferia de São Paulo

Muitos jovens sonham em se tornar músicos, fazer parte de uma banda, ser artistas. Mas, para que seus anseios tenham possibilidades de realização, é preciso aprender a tocar um instrumento. No Brasil, estudar música é privilégio de poucos. A grande maioria vive às margens desse universo. Neste contexto, levando em conta a realidade do País, iniciativas que têm por objetivo inserir essa parcela da sociedade no ambiente musical fazem a diferença.

Engajada no propósito de contribuir para um mundo mais justo, a Associação Praticatatum, idealizada por Arlen Ribeiro, vem, desde 2008, trabalhando para desenvolver, por meio da música, a sensibilidade, a cidadania e as habilidades artísticas e intelectuais de crianças e adolescentes da periferia de São Paulo.

O projeto surgiu como expansão do curso de percussão, iniciado em 2002 no Programa I.D.E.A.L, do Educandário Dom Duarte – uma das unidades de atendimento social da Liga Solidária, na zona oeste de São Paulo.

O nome Praticatatum é decorrente da tentativa de expressar, através das sílabas, o som de alguns instrumentos de percussão como: bumbos, surdos, caixas e pratos, (PRA) é a tradução do som da apogiatura na Caixa, (TI) um leve toque no prato, (CA) um toque simples na caixa, (TA) outro toque simples na caixa mais forte e (TUM) uma batida no bumbo ou surdo.    

Cerca de 300 estudantes, entre 6 e 21 anos, participam do projeto. Eles aprendem percussão, musicalização infantil (xilofone, canto-coral e flauta-doce), violão, guitarra, contrabaixo, teclado, instrumentos de sopro e cordas, além da discotecagem com tecnologia musical informatizada.

Os alunos recebem informações musicais diversas, que vão da música popular à erudita, buscando referências, não somente dentro das salas de aulas, mas também frequentando eventos, shows e concertos musicais nos teatros da cidade de São Paulo.

Alguns desses adolescentes que se conheceram no projeto começam a montar as primeiras bandas e até já tocam em eventos. É o caso de Gabriel Alves, 18, e Leonardo Maia, 16, que formaram a banda “4 Elementos”, há quase um ano, com o intuito de tocar músicas diversas de artistas conhecidos e também composições próprias. Além deles, outros três estudantes completam o grupo. “Sempre amei música, éum sonho e um objetivo que quero alcançar”, afirma Guilherme Zacarias, guitarrista. Eles tocaram na festa junina do Educandário e já têm apresentação marcada para o dia 18 de julho no Céu Uirapuru.

Leonardo Maia faz guitarra e também é integrante da banda “Padawan”. Ele fala com entusiasmo sobre o trabalho que vem realizando ao lado dos amigos. “É realmente muito boa a sensação que as bandas  proporcionam. Elas são, na verdade, uma extensão do Praticatatum, mas só que agora de um jeito mais nosso.” Em uma garagem cedida pelo pai de um dos estudantes, os adolescentes passam horas ensaiando. Eles têm instrumentos próprios e conseguiram, emprestado do projeto, o equipamento de som.

Aluno há 4 anos, Gabriel Alves diz que descobriu o que realmente gosta e quer fazer no futuro. “No Praticatatum encontrei a música, que é a minha vocação, e também conheci lugares e pessoas. Com certeza quero seguir a carreira de músico, não consigo me ver fazendo outra coisa. A música sempre fez parte da minha vida”, diz o contrabaixista.

Já Renato Galvão, 18, que toca bateria na banda “Padawan”, revela que não só fez amigos, mas também viu surgir, por meio da música, uma nova perspectiva para enfrentar os problemas pelos quais passava, quando ingressou há 3 anos e meio no Praticatatum. “O projeto acrescentou muitas coisas positivas na minha vida. Através dele, conheci o curso que faço hoje, a musicoterapia. Era um momento muito difícil para mim, psicologicamente. Acredito que os amigos que ganhei lá e a música me ajudaram a melhorar, me fizeram bem”. Renato cursa o primeiro ano da faculdade e já tem planos de fazer uma especialização na área que escolheu seguir.

Para Arlen Ribeiro, ver esses jovens seguirem seus rumos na música, a partir do que aprenderam no Praticatatum, é um reconhecimento ao projeto. Ele ressalta a importância da música no desenvolvimento profissional e pessoal dos estudantes: “O conhecimento musical permite melhorar a concentração, o respeito mútuo, o trabalho em grupo, o desenvolvimento da coordenação motora, a percepção auditiva, o pensamento crítico e o contato com uma realidade repleta de manifestações culturais. Esses jovens talentos realizam um trabalho admirável. É muito importante para eles serem reconhecidos e prestigiados também na região onde vivem.”.


sexta-feira, 24 de maio de 2013

Sobre verdades, mentiras e o universo das relações humanas


Instigante, perturbador, intenso. Essas três características podem definir de forma sucinta mais um thriller de Harlan Coben. O prestigiado autor de “Cilada” e “Não conte a ninguém”, entre outros, surpreende mais uma vez com “Desaparecido para sempre”. São 320 páginas de puro suspense. Lançado no Brasil em 2009 (Editora Arqueiro), o livro já vendeu mais de 40 milhões de exemplares em todo o mundo. Do início ao fim, o leitor é levado a experimentar um clima de mistério que se renova a cada final de capítulo. E quando se pensa que os acontecimentos vão seguir determinado rumo, engana-se. A narrativa é uma constante de reviravoltas, na qual nada é o que parece ser.
Harlan Coben é o único escritor a receber três prêmios da literatura americana, a chamada trinca de ases: o Anthony, Ahamus e o Edgar Allan Poe, pelos livros da série Myron Bolitar. As obras do autor já foram traduzidas para 40 línguas. Na França, Coben é conhecido como “o mestre das noites em claro”. O livro “Não conte a ninguém” virou filme e foi premiado, tendo como protagonistas Kristin Scott Thomas e François Cluzet. A película está disponível no Brasil em DVD.

A trama

            A história é contada em primeira pessoa por Will Klein. Ele mora em Nova Jersey e está com a mãe nos últimos momentos de vida. Em meio ao clima de tristeza, ele descobre que o irmão mais velho, Ken, acusado de estuprar e assassinar a jovem Julie Miller há 11 anos, está vivo. Ele esteve foragido, desaparecido durante todo esse tempo. Antes de morrer, Sunny, a mãe, faz a revelação. A família preferia acreditar que ele estava morto do que na possibilidade de sua culpa. A partir desse momento, o suspense toma conta da narrativa.
Embora o tema esteja relacionado a um acontecimento passado, ele é narrado de forma linear. O autor monta seu texto numa linguagem informal, com diálogos rápidos, diretos e, por vezes, sarcásticos. Em certos momentos, Will conversa como se estivesse frente a frente com o leitor, ou na internet, com interferências, quando quer enfatizar algo. Isso traz uma sensação de proximidade com a história.
A cada capítulo, uma surpresa. Uma nova descoberta que pode ser verdadeira ou falsa para os personagens envolvidos e novas informações para o leitor. Um bom exemplo disso é a revelação de que Julie havia sido namorada de Will. Ele tem verdadeira adoração pelo irmão desaparecido.
            Uma personagem importante e que e é responsável por ótimos momentos do livro é Sheila Rogers. Aqui está uma das maiores surpresas do thriller. Sheila é uma jovem de olhos verdes, muito bonita e zelosa, a quem Will ama apaixonadamente. No entanto, o que a moça tem de beleza tem de enigmática. Ela não gosta de falar de seu passado. Carrega muitos segredos. Acontece que, de repente, Sheila desaparece misteriosamente. Suas digitais são encontradas na cena de um crime e nada na cabeça de Will faz sentido. 
            Squares é professor de ioga e ex-partidário do nazismo. É o melhor amigo de Will. Em meio a essa teia de incertezas, o iogue conhece muita gente influente e tem acesso aos mais diferentes ambientes. Isso ajudava na busca de informações sobre o paradeiro de Sheila. Os três trabalhavam juntos na Covernant House, organização - que existe na vida real -, e que recolhia e crianças do submundo das ruas.

 Descompasso

            Coben sabe bem ambientar um suspense. A todo momento, um novo e contundente argumento, que transforma em dúvida o que aparentava ser certeza. Isso acontece nas passagens de Joseph Pistilho, um poderoso e ambicioso agente do FBI. Durante a investigação, suas indagações a respeito de Ken e Sheila Rogers levam o leitor a desconfiar de Will. Em determinado momento Katy, irmã caçula de Julie aparece e tudo volta ao começo. Nada é certo. Tudo caminha em descompasso. O que é verdade? O que é mentira?  O autor consegue manter o suspense até a última página.
            John Asselta, o Fantasma, amigo de infância de Ken, também revela muitas surpresas ao longo da narrativa. O apelido faz uma alusão à sua pele clara. Ele é descrito como perverso, sinistro, lunático. Um homem que gosta de machucar as pessoas, de matá-las. Quando ele entra em cena é de arrepiar. É assim quando Will diz: “E ali, sorrindo pacientemente com as mãos nos bolsos, estava o Fantasma.”.
O mais surpreendente nisso tudo é que é de Asselta um questionamento profundo, reflexivo e interessante do livro: “Você conhece a teoria de que toda vez que alguém faz uma escolha divide o mundo em universos alternativos?” Ele pergunta ao perigoso Philip McGuane, seu parceiro no crime. Diante da resposta positiva, ele continua, “Muitas vezes fico imaginando se em algum desses universos nós teríamos enveredado por um caminho diferente ou se, ao contrário, nosso destino era estar aqui não importa o que acontecesse”.
            John Asselta, Sheila Rogers e Katy, sem sombra de dúvidas, protagonizam três dos melhores e mais marcantes momentos do thriller. Cada um em um momento diferente, mas todos decisivos. Momentos de revelações surpreendentemente sensacionais. Coisas que o leitor nem imagina e que modificam de forma definitiva a realidade de Will. Para saber do que se trata, tem que ler o livro. Uma coisa é certa nisso tudo: Por “Desaparecido para sempre” vale a pena passar a noite em claro. O livro é completo. Supera todas as expectativas. É envolvente. Incrível.


Ficha Técnica:
Obra: Desaparecido para Sempre - título original (Gone for Good)
Autor: Harlan Coben
Editora: Arqueiro
Páginas: 320
Formato: 16 X 23 cm
Lançamento: 2009
Preço: R$ 29.90

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Oblivion: "É possível sentir falta de um lugar que você não conhece?"

Foto divulgação - Oblivion
Após gerar grande expectativa nos amantes do gênero de ficção científica, o filme Oblivion, estrelado por Tom Cruise, astro da imperdível trilogia Missão Impossível, chega às telonas. Quem gosta de ver Cruise em ação em longas-metragens de tirar o fôlego pode estranhar esta narrativa que segue num ritmo menos intenso, diferentemente das películas que desde o início marcaram e projetaram o ator para sua carreira de sucessoTambém fazem parte do elenco Morgan Freeman, Olga Kurylenko, Andrea Riseborough e Melissa Leo.
    Com um orçamento de US$ 120 milhões, o longa é o segundo trabalho de ficção científica de grande importância do diretor Joseph Kosinsk, que também assina o roteiro ao lado de Willian Monahn. O primeiro foi Tron - O Legado, de 2010. Oblivion significa esquecimento, perda de memória, e antes de virar roteiro de cinema foi uma HQ criada por Kosinsk.
       A história se passa em 2077 e Cruise é Jack Harper, um dos últimos seres humanos do planeta. Um homem sem lembranças numa terra devastada. Nesse contexto, a lua foi destruída por alienígenas e, assim, a Terra foi arrasada por tsunamis, terremotos e pelas mãos do próprio homem, após longos períodos de guerras nucleares, tornando-se inabitável. Os sobreviventes foram viver numa colônia lunar em Saturno. Harper, ao lado da fria Victória (Andrea Rosebourogh), trabalha na manutenção dos equipamentos de segurança, os chamados drones, que protegem a terra contra possíveis ataques dos seres extraterrestes. A missão já está quase no fim, no entanto, tudo muda quando Jack salva Julia (Olga Kurylenko), uma bela e misteriosa mulher que sempre aparecia em seus sonhos, de uma nave que caiu. A partir daí, ele passa a se questionar sobre o que realmente é verdade na sua vida.
       O filme peca em alguns aspectos. Morgan Freeman, no papel de Malcolm Beech, por exemplo, está morno e um pouco apagado. Além disso, em certos momentos, a história oscila, perde o pique e fica um tanto confusa. Segundo Kosinski, Oblivion é uma grande homenagem aos filmes de ficção científica dos anos 70, como O exterminador do futuroAlien, o 8º passageiro e 2001: Uma Odisseia no espaço. Sob esse ponto de vista, o longa tinha potencial para ir além. Por outro lado, por ser um tributo a outros filmes, pode ser que ele não tenha sido tratado com a profundidade que merecia.
      A boa notícia é que nem tudo está perdido, pois Tom Cruise, com todo seu carisma, consegue transmitir, em pouco mais de duas horas de filme, sua angústia existencial, simplicidade e até certo romantismo e nostalgia em relação à vida na Terra, como mostra o seguinte trecho: “A terra é uma lembrança pela qual vale a pena lutar”. Cruise, mais uma vez, faz jus ao status que carrega. É um ator que brilha em qualquer cenário: aventura, ação, romance, comédia sem perder o charme. É importante notar que este não é o primeiro filme de ficção científica de Tom Cruise: em seu currículo constam histórias como Minority Report, de 2000, e Guerra dos Mundos, de 2005.
      A fotografia do diretor de arte chileno Claudio Miranda, vencedor do Oscar 2013 pelo filme As aventuras de Pi, ganha destaque. As paisagens que compõem a narrativa estão pautadas nos contrastes que vão desde lugares desertos, cinzas e frios, que passam a sensação de abandono e desolação, até a linda paisagem verde e cheia de vida, para onde o personagem gosta de ir. Ali, numa espécie de cabana, de frente para um lago em meio à natureza, Jack Harper guarda livros, discos, plantas e outros objetos que encontra em meio às ruínas. O lugar é seu paraíso. As máquinas futuristas de altíssima tecnologia, como uma moto e um aerobolhas com traços leves e claros quase transparentes também ajudam a compor um visual interessante e agradável.    
       Oblivion pode não ser um filme excelente, mas também não é ruim. Há mais acertos que erros. E algo positivo que deve ser observado é que, embora essa não seja a intenção do filme, o espectador é levado a refletir sobre sua existência e sua interioridade, e em como seria difícil não lembrar, não ter recordações dos momentos que viveu, das pessoas que amou, das coisas que gostava de fazer. Ora, um homem sem lembranças é um ser vazio. Uma pessoa atenta deve se questionar como Jack se questiona: será que “é possível sentir falta de um lugar que você não conhece? Lamentar por uma época que você nunca viveu?”. Talvez nesta pergunta esteja o verdadeiro sentido de Oblivion.

FICHA TÉCNICA

Direção: Joseph Kosinski
Roteiristas: Joseph Kosinski, Karl Gajdusek
Gênero: Ficção Científica
Duração: 126 min.
Distribuidora: Paramount Pictures Brasil
Estreia: 12 de Abril de 2013
Elenco: Tom Cruise, Morgan Freeman, Melissa Leo, Nikolaj Coster-Waldau, Olga Kurylenko, Nikolaj Coster-Waldau, Zoe Bell, Andrea Riseborough, James Rawlings, Catherine Kim Poon.


quinta-feira, 18 de abril de 2013

Resenha: A revolução dos bichos

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A revolução dos bichos é uma sátira, em forma de fábula, ao Governo totalitarista da União Soviética e seu líder, Joseph Stálin. A narrativa de George Orwell, publicada em 1945, passa-se na fazenda do Solar, na Inglaterra. Sr. Jones, o dono, começa a ter problemas com o álcool e assim, acaba por negligenciar os animais. Estes, além de serem mal alimentados, são obrigados a trabalhar exaustivamente.

Um porco chamado velho Major reúne, no celeiro, todos os bichos e com um discurso afiado e uma canção “Bichos da Inglaterra”, acende em todos os “camaradas” o sonho de liberdade. Ele os convence de que precisam lutar contra aquela condição miserável de vida. Dias depois, o Major morre, mas outros dois porcos, Napoleão e Bola-de-neve dão continuidade ao seu ideal revolucionário – os porcos eram os mais inteligentes dos bichos. À nova ideologia dão o nome de animalismo. Certo dia, com fome e cansados de serem explorados, os animais expulsam o Sr. Jones e tomam a fazenda. Esta passa a se chamar Fazenda dos Bichos.


Sob a nova perspectiva criam sete mandamentos, os quais todos deverão seguir, entre eles: “qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo; nenhum animal matará outro animal e todos os animais são iguais.” Ao longo da história, no entanto, os mandamentos vão sendo modificados por Napoleão. Ele se torna o Líder após roubar o projeto de Bola-de-neve – a construção de um moinho - e o expulsar da fazenda. O poder lhe sobe à cabeça. Ele faz negócios com fazendeiros e passa a agir como os humanos. Os animais desobedientes são mortos. Por fim, o mandamento que fala a respeito da igualdade dos animais é reescrito. Torna-se “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”, denotando a superioridade e privilégio dos porcos em relação aos outros animais. É o fim dos ideais de igualdade, princípio da revolução.


Desta forma, com o tempo, sem se darem conta, todos os outros bichos passam a ser manipulados e subjugados por Napoleão. Ele conta com a ajuda de Garganta, outro porco, responsável por levar aos bichos as ordens do líder. Resignados, os animais não reagem. A não ser as galinhas que, vendo-se obrigadas por, Napoleão, a aumentar sua produção de ovos, sob a liderança de três frangas - que depois são degoladas -, rebelam-se. Elas quebram os ovos e são duramente reprimidas. O líder resolve deixar de alimentá-las até que obedeçam suas ordens. Algumas morrem. As outras voltam ao trabalho. 

Como dito no inicio, a obra de Orwell satiriza à União Soviética, no período da Revolução Russa entre 1930 e 1940. No documentário “A História da União Soviética” é nítida a semelhança entre as atrocidades do sanguinário líder comunista Stálin, todo o contexto que o envolve e os episódios do livro. Mortes, fome, injustiça. Durante quase uma hora e meia, depoimentos e imagens chocantes revelam até onde um ser humano, em nome de uma ideologia, é capaz de chegar. De acordo com o documentário, o Socialismo de Karl Marx e Engels e o Nazismo de Adolf Hiltler caminham lado a lado. Esses governos totalitários têm como finalidade, a construção de um novo homem e de uma nova sociedade. Para isso, é preciso exterminar àqueles que não se enquadram nos padrões estabelecidos por tais ideologias.  Assim, conforme o documentário, sempre que um regime totalitário se instala em qualquer parte do mundo, 10% de sua população é dizimada.

No livro, os porcos representam os líderes comunistas: Napoleão é associado a Stálin e Bola-de-neve a Trotski. Homens com inteligência que chegaram ao poder para conduzir os desfavorecidos social e economicamente. Os outros animais são essa população desemparada. Eles são explorados e enganados; as informações que Garganta lhes dá são sempre manipuladas. São trabalhadores “braçais” como o burro Benjamim que, apesar de saber ler e perceber o que realmente acontece na fazenda, prefere cruzar os braços. As ovelhas que não querem saber de aprender e só sabem repetir o lema “Quatro pernas bom, duas pernas ruim”. O forte cavalo Sansão, seguidor servil e fiel de Napoleão que trabalha sem descanso e acaba tendo um fim dramático. Doente, ele é sacrificado. Como acontece nas ditaduras, aqueles que são contra são exilados ou mortos. No livro, essas pessoas são representadas pelas galinhas.

Em suma, as poucas páginas de “A Revolução dos Bichos” dizem muito. Levam o leitor mais atento a profundas reflexões. Não apenas sobre a União Soviética, o stalinismo, e o horror vivido pela população naquele período, mas também sobre a vida. Sobre a sociedade, as injustiças, a lei do mais forte, a opressão. E, sobretudo, é uma reflexão sobre como alguns homens podem ser cruéis com seu próprio semelhante, quando sucumbidos pela chama do poder, da ganância e do sentimento de superioridade.   

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Análise do filme O carteiro e o poeta

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O Filme de 1994, dirigido por Michael Radford, conta a história de Mario Ruppolo, um homem simples e sonhador que mora com o pai, um pescador, em uma vila, na Itália. Mário se recusa a seguir o mesmo ofício. Diz que tem enjoos no mar. Ele então consegue um emprego nos correios. Fica encantado quando descobre que vai entregar cartas para o poeta Chileno – Prêmio Nobel de Literatura (1971) - , Pablo Neruda que, por motivos políticos, está exilado na ilha. Eles, embora venham de mundos bastante distintos, logo se tornam amigos. A simplicidade de Mário cativa o poeta.

Mario apaixona-se por Beatrice, mas é muito tímido. Para tentar conquistá-la, pede a Neruda que o ensine a fazer poesia. Descobre que não é nada fácil. Não consegue escrever um poema sequer. No entanto, consegue o amor de sua musa, recitando para ela uma poesia de Neruda. Em determinado momento, o poeta lhe fala que nos textos poéticos são utilizadas as metáforas. Mario fica confuso, nunca tinha ouvido aquela palavra, portanto, não sabia o que ela significava.

Sentados frente à praia, Neruda lhe recita uma poesia. De forma figurativa fala sobre o mar. Utiliza o ritmo das palavras: intensidade, sonoridade.  Dá voz ao mar. Ao questionar o que o amigo pensa sobre suas palavras, descobre que o fez sentir-se estranho. Mario descreve a sensação. Diz que, ao som da poesia, sente-se como se fosse um barco em movimento. Assim, o poeta explica ao amigo que a descrição do que sentiu é uma metáfora.

Com o fim do exílio, Neruda volta ao seu país. Mário fica extremamente triste, pois a presença do poeta na ilha o transformou. Ele desenvolveu seu senso crítico sobre política e classe social. O carteiro casa-se com Beatrice e ela engravida. Um dia, antes de sua morte, Ruppolo decide fazer uma surpresa para o amigo distante. Com um rádio transmissor, ele capta o som do mar, das montanhas, do coração do filho, ainda na barriga da mãe, e das estrelas. O carteiro, que não conseguira escrever uma palavra poética, nesse momento, cria a mais bela e única poesia de sua vida.

Segundo a semiótica perciana, um signo é algo que representa à mente alguma outra coisa, algo diferente de si mesmo. Compõe-se de três termos: o signo, o objeto e o interpretante. Neste sentido, Mario Ruppolo, o interpretante, mesmo não conseguindo expressar-se em palavras poéticas, seu objeto de desejo, como gostaria, transcende a dificuldade ao realizar a gravação dos sons ambientes, inclusive o som das estrelas. A composição poética do carteiro compõe-se de signos não verbais.


Quanto à relação, os signos se classificam em: ícone que representa seu objeto por semelhança; índice, por ligação factual e símbolo, por hábitos e convenções.  O signo icônico ou hipoícone, de acordo com Pierce[1], refere-se a algo que já se mostra como signo, representando alguma coisa. Os ícones dividem-se entre: imagem, que diz respeito às características abstraídas da imagem; diagrama que representa as relações internas, semelhança entre a representação e a realidade e, por fim, as metáforas que, segundo Pierce, “representam o caráter representativo de um signo, traçando-lhe um paralelismo com algo diverso”. Ou seja, metáforas são comparações, significados de dois elementos distintos.

Nas palavras de Lucia Santaella[2], as metáforas “(...) extraem tão-somente o caráter, o potencial representativo em nível de qualidade, de algo e fazem o paralelo com alguma coisa diversa. Há sempre uma forte dose de mentalização e acionamento de significados nas metáforas”. Neste caso, quando Neruda tenta explicar para Ruppolo o significado da metáfora, ele não entende. No entanto, ao ouvir poema recitado pelo poeta, o carteiro consegue captar, por meio dos sentidos, a beleza daquelas palavras. Ele consegue sentir as palavras em movimento como o vai e vem das ondas do mar.

"O Carteiro e o Poeta" é uma Obra-prima. Repleta de significados, de signos verbais e não verbais: a música, a paisagem, a poesia, o amor, o aprendizado, a amizade e outros tantos. Simplesmente apaixonante e inesquecível.



[1] Citado por Santaella – A teoria geral dos signos – como as linguagens significam as coisas – pg 111
[2] A teoria geral dos signos – como as linguagens significam as coisas – pg 120

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Análise> O Enigma de Kaspar Hauser

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O Filme conta a história de Kaspar Hauser, um indivíduo que surge, não se sabe de onde, na Alemanha, no início século XIX, e que entrou tardiamente para a comunidade linguística. Misteriosamente, o rapaz não fora apresentado a nenhuma forma de linguagem; não sabia falar, escrever nem tinha coordenação motora desenvolvida. Por ter vivido isolado, era um ser fora do mundo. Apesar disso, havia nele certa docilidade. A música o encantava de forma imensurável e ele queria poder ser capaz de executá-la ao piano.

Hauser não tinha noção de verticalidade ou horizontalidade. Não sabia discernir entre sonho e realidade e, assim, sentia-se triste e ferido, pois possuía um vazio existencial. A música, neste sentido, o preenchia e por isso era tão importante para ele, pois esta, além de ser uma linguagem universal, está além da expressão verbal, além das limitações linguísticas. A música é natural ao homem, e, por isso, consegue alcançá-lo no mais íntimo do seu ser e ela tocava Hauser profundamente.

Kaspar Hauser tinha certa dificuldade em aceitar os preceitos da sociedade. Ele fazia questionamentos sobre religião e o papel da mulher e do homem naquele contexto. Além disso, não sabia contar sobre seu passado, sua história, pois não conseguia articular, interpretar ou relacionar acontecimentos vividos. O homem é a única espécie que transmite informação essencial para a vida, por meio de narrativas, de histórias que conta, ao longo de sua existência. Kaspar Hauser, no entanto, foi privado desta condição. Ele não ouviu e, desta forma, não aprendeu a contar sua própria história. Assim, de acordo com o filme, Kaspar Hauser não desenvolveu a linguagem naturalmente, mas culturalmente. Visto que quando apareceu apenas repetia que queria “ser tão bom cavaleiro como meu pai foi”, mas com a convivência com as pessoas foi aprendendo o que lhe ensinavam.  

Neste sentido, a história de Kaspar Hauser enquadra-se na teoria do relativismo linguístico, na qual a experiência determina a linguagem. Assim, o ser humano constrói-se a partir da cultura e da língua do contexto que o circunda. A experiência refere-se àquilo que o sujeito é capaz de captar pelos cinco sentidos, ou seja, a relação dele com o meio. Nesta visão teórica, a linguagem é fator determinante para a forma de cada indivíduo ser e estar no mundo.

Dois pensadores da teoria relativista são: O antropólogo Edward Sapir (1884-1939), nascido na Alemanha, mas criado nos Estados Unidos e seu aluno, o engenheiro químico norte-americano, Benjamin Lee Whorf (1897-1941). A hipótese formulada por eles leva o nome de Sapir-Worf e diz respeito à relação de uma sociedade com sua visão de mundo. De acordo com a hipótese essa visão é relativa a traços característicos da língua de uma determinada comunidade. Cada povo vê e capta a realidade a sua volta por meio de classes gramaticais e semânticas de sua língua. Há desta forma, uma interação entre linguagem e cultura. “De fato, ‘o mundo real’ é em larga escala construído de forma inconsciente com base nos hábitos do grupo”. [1]

Assim, é possível perceber que o fato de Kaspar Hauser não ter sido inserido na vida social como qualquer outro ser humano o impossibilitou de desenvolver, não apenas a linguagem, mas também a consciência de si. Quando encontrado ele não possuía noção de identidade, visto que é no contato com o outro que o ser humano se constrói e percebe-se como ser único e, ao mesmo tempo, como parte do mundo que o cerca. Consequentemente, mesmo depois que aprendeu a andar, a sentar-se à mesa e a falar, toda complexidade que envolvia a língua, seus signos, símbolos e até própria vida também não lhe fazia sentido como fazia para os outros seres humanos. De acordo com Sapir: “A linguagem é uma grande força de socialização, provavelmente a maior que existe. Com isso não queremos dizer apenas o fato mais ou menos óbvio de que a interação social dotada de significado é praticamente impossível sem a linguagem, mas que o mero fato de haver uma fala comum serve como um símbolo peculiarmente poderoso da solidariedade social entre aqueles que falam aquela língua”.[2]

O ser humano ao nascer é, até certa idade, completamente dependente da mãe. Neste sentido, o sujeito que não tem contato com outras pessoas, isto é, que não tem quem lhe cuide, alimente, ensine a andar, a falar, certamente, este ser não sobreviverá. De acordo com o filme, Hauser sobreviveu, porque alguém o alimentou durante os anos em que ficou isolado. Sob esta perspectiva, o homem não vive sozinho, é um ser que precisa do outro para viver e que está em constante construção, o que significa que, ao longo de toda a sua vida, está apto a aprender.






[1]  [Sapir, “The status of linguistics as a science”, 1929]
[2]  [Sapir, language, 1921]

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Violência em São Paulo

As desigualdades sempre foram marcantes na sociedade brasileira. É sabido que as discrepâncias sociais, a segregação e a concentração de renda nas mãos das minorias são potenciais fatores de violência. Na Cidade de São Paulo, os contrastes são aviltantes. Na zona sul da capital, dois mundos diferentes coexistem no mesmo espaço. O Morumbi e o complexo do Paraisópolis.

Segundo um estudo publicado no portal da prefeitura de São Paulo, Paraisópolis é considerada a segunda maior favela da cidade, com 55.590 pessoas e 20.832 imóveis. O estudo revela que boa parte das casas ali é feita de alvenaria e possui de dois a três cômodos. No Morumbi, luxuosos prédios com apartamentos requintados, (com valores que variam entre R$ 1.406 e R$ 9.459 o m²), além de grandes mansões compõem a distinta paisagem.

Na favela, a educação precária forma indivíduos despreparados, com poucas chances no mercado de trabalho e na vida. Em bairros como o Morumbi, as escolas particulares e as diversas atividades extracurriculares capacitam os jovens para as melhores universidades do país. Sem emprego, sem dinheiro e sem oportunidade, o caminho para muitos moradores das favelas é o da criminalidade. Os ricos tornam-se seus reféns.

O Morumbi vive o ápice da violência. Os assaltantes espreitam suas vítimas nos faróis da avenida Giovanni Gronchi e nos portões de suas mansões. De acordo com moradores falta policiamento na região. O problema, no entanto, é muito mais complexo.

As conseqüências desta disparidade são inevitáveis. Não se pode acabar com a violência sem antes criar condições favoráveis à educação, saúde, lazer, cultura e às necessidades básicas do indivíduo. Enquanto estas lacunas não forem preenchidas, os crimes, o medo e a insegurança continuarão fazendo parte do cotidiano do Paraisópolis, do Morumbi e de todos os brasileiros. 

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

ECONOMIA, POLÍTICA E A FOME NO MUNDO

A vida é uma incógnita. O homem, ao descobrir-se pensante, capaz de autodenominar-se como tal, tentou de várias maneiras, decifrá-la e explicá-la. Pouco conseguiu em tal propósito. Ao longo de sua existência e de suas diversas formas de pensamento, este ser complexo, paradoxal e inconstante lançou seu olhar sobre o meio que o cerca. Usou e abusou de tudo que encontrou pela frente. Consumiu os recursos da natureza. Sob o signo do desenvolvimento transformou-a, em muitos fatores, negativamente. Ele percebeu que tê-la a seu serviço era mais vantajoso do que viver integrado à ela. Desta forma, buscou a todo custo, riqueza. Com esse pensamento fez guerras. Matou inocentes. Construiu bombas atômicas. Quis sempre mais e mais, sem pensar nas condições primeiras da matéria: ela é escassa e perecível.
Ao longo da história da humanidade, grandes potências econômicas governadas por políticos poderosos regeram o mundo. Os benefícios sempre foram para poucos. Os olhos mantiveram-se fechados para as necessidades em comum e bem abertos para a finalidade única de satisfazer desejos particulares. Por meio de acordos políticos, más gestões, negligência, desvios de verbas privilegiaram-se e condenaram milhões de pessoas a uma vida miserável, à pobreza extrema, à fome e muitas vezes à morte. Sobre esse aspecto vale a pena ressaltar um dos períodos mais tristes e cruéis da história. Um crime contra a humanidade, protagonizado por Joseph Stálin em meio à Revolução Russa, mais especificamente, entre 1932/1933. O líder socialista da União Soviética, com dificuldades no trato sobre a estatização das terras da Ucrânia ordenou o confisco de todos os suprimentos alimentícios locais. Batatas, beterrabas, grãos. Tudo foi confiscado. Com a ajuda do Exército Vermelho, um cordão de isolamento foi colocado para que ninguém pudesse sair daquelas terras nem receber ajuda de fora. Em um ano, sete milhões de ucranianos morreram de fome. Os Milhões de toneladas de grãos confiscados dos camponeses foram exportados para o Ocidente[1].    
Hoje, de acordo com o relatório sobre O Estado da Insegurança Alimentar no Mundo 2012 (SOFI), no biênio 2010-2012, divulgado no dia 09 de outubro/12, em Roma pela FAO, FIDA e PMA[2], há no planeta, 2 bilhões de pessoas desnutridas e quase 870 milhões passam fome, o que equivale a 12,5% da população mundial. A maior parcela das pessoas sob essa condição, 852 milhões, vive nos países em desenvolvimento. E 16 milhões de pessoas subnutridas estão nos países desenvolvidos.
No prefácio do relatório os reponsáveis pela FAO, FIDA e PAM, José Graziano da Silva, Kanayo F. Nwanze e Ertharin Cousin, respectivamente declaram: “No mundo de hoje, com oportunidades técnicas e econômicas sem precedentes, consideramos totalmente inaceitável que mais de 100 milhões de crianças menores de cinco anos tenham peso insuficiente e não possam, portanto, alcançar o seu potencial humano e socioeconômico, e que a subnutrição infantil seja a causa de morte de mais de 2,5 milhões de crianças por ano.”
Os países da África sempre apresentaram um quadro elevadíssimo de subnutrição de sua população. O continente caracteriza-se pela constante presença da fome. As principais causas desta realidade naqueles países estão relacionadas à dependência econômica externa - fruto do período colonial -, à forma de ocupação territorial e ao grande crescimento populacional - só nos últimos quatro anos, foram agregadas ao continente quase 20 milhões de pessoas. Os africanos representam 15% da população mundial. No mesmo período, a quantidade de pessoas com fome que representava 175 milhões, subiu para 239 milhões. Outro agravante são as terras improdutivas para a agricultura, que se transformam em curto prazo, em áreas de desertificação, terras que têm sua capacidade fértil esgotada. O plantio de monoculturas destinadas ao mercado externo também contribui para o agravamento da situação.  
Cerca de 22,9% dos africanos não têm acesso às quantidades mínimas diárias de calorias necessárias para sua sobrevivência. Esta característica é chamada de fome oculta. Parte dessa população pode morrer de fome pela ausência ou insuficiência de nutrientes no organismo, como cálcio, proteína e potássio. A falta de vitamina A e do complexo B causam raquitismo, debilita o sistema imunológico no combate a vários tipos de doenças no organismo. Assim, o indivíduo fica vulnerável a contrair viroses, patologias bacterianas, consequentemente, fica impedido de trabalhar e sem dinheiro para comprar alimento.
Conforme James Morris, diretor-executivo do PMA, a carência de alimentos gera vulnerabilidade política. Neste sentido, a fome é simultaneamente causa e consequência da pobreza. Outro fator que deve ser levado em conta no contexto da fome são as condições climáticas. A FAO estima que Até 2050, 20% da população corre o risco de passar fome em virtude das perdas de produtividade associadas ao clima. A maioria dessas pessoas vive na África subsaariana. O levantamento aponta que entre os países em desenvolvimento, a região que mais sofre com problemas de subnutrição localiza-se no sul da Ásia, são 36% do total.
O Brasil é o segundo maior exportador de produtos agrícolas do mundo. Detém 22% de terras cultiváveis do globo e ainda assim, de acordo com o relatório, cerca de treze milhões de brasileiros passam fome ou sofrem com a subnutrição. O número equivale a 6,9% da população.

ANO DE SECAS

Os Estados Unidos, a maior potência agrícola do planeta, sofreu com uma grande seca este ano de 2012. A pior dos últimos cinquenta anos.  De acordo com uma matéria publicada na CNN, no mês de setembro/12, o calor excessivo do verão gerou sérios problemas de produção e estes se estenderão até 2013. Quase 80% dos Estados Unidos continentais foram afetados pela seca. E ainda, Rússia e Ucrânia também provaram a amarga experiência e viram seus produtos se perderem pelos mesmos motivos. A seca arrasou as principais culturas dessas regiões. Conforme a matéria, a safra de milho deve cair ao menor nível desde 1995. Em julho os preços do milho e do trigo aumentaram cerca de 25% cada e os da soja cerca de 17%. 
      De acordo com o economista-chefe global Bill Witherell[3], quando há noticias de crise no setor alimentício, o mundo inteiro fica em estado de alerta e de grande preocupação. No entanto segundo ele, as implicações destas secas recaem com maior impacto sobre países em desenvolvimento. Estes são os que mais sofrem os efeitos negativos dessas ocorrências. A população pobre não tem dinheiro para arcar com os aumentos de preços. De acordo com informações do Banco Rabobanck[4], divulgadas em setembro deste ano, o índice de preços de alimentos pode aumentar em até 15%. Há temor de que haverá uma nova crise de alimentos no mundo – a terceira em quatro anos. A instituição aponta que os preços globais dos alimentos deverão atingir níveis recordes em 2013. Além das secas já citadas, outra razão para o aumento dos preços é baixa estocagem de culturas de alimentos.

AVANÇO, DEGRADAÇÃO, DESPERDÍCIO

São inegáveis os benefícios dos avanços tecnológicos. A medicina, a cura de doenças, o aumento da expectativa de vida entre outros ganhos científicos que transformaram o modo de existir do ser humano, ao longo do tempo. No entanto, isso só foi possível, por meio da exploração dos recursos naturais. Ou seja, para se alcançar um, inevitavelmente, foi preciso destruir o outro.
O mundo, hoje, fala em conciliar o uso equilibrado dos recursos ambientais disponíveis com o atendimento às necessidades humanas sob o viés da economia. Agir de forma a harmonizar estes três fatores é atuar visando o futuro do planeta e das gerações que nele habitarão. Para se conseguir tais objetivos, todavia, é preciso mais que palavras. A situação pede urgência.      
As contradições, no entanto, estão longe de serem sanadas. No texto sobre alimentação apresentado no RIO+20, em junho deste ano, a FAO aponta dados impressionantes[5]. Avalia-se que cerca de 1,3 bilhão de toneladas de alimentos sejam desperdiçados, por ano, no mundo. Isso corresponde a um terço de toda produção alimentícia do planeta. Outro ponto que deve ser considerado refere-se à degradação dos solos. Estima-se que, anualmente, cerca de 24 bilhões de toneladas de terras férteis tornam-se improdutivas, afetando, desta forma, 1,5 bilhão de pessoas a nível global. Outro dado mostra que desde o começo do século XX até hoje, já foram perdidas aproximadamente 75% da diversidade de culturas nos campos agrícolas.  
Interessante o que Edgar Morin[6], diz sobre a economia em relação à sociedade. Segundo ele, os “Experts” desta área de conhecimento não são capazes de prever o desenvolvimento econômico, mesmo a curto prazo, já que ela – a economia - não “dialoga” com as outras ciências. Em suas palavras: “A economia, a ciência social matematicamente mais avançada, é também a ciência social humanamente mais fechada, pois abstrai das condições sociais, históricas, políticas, psicológicas, ecológicas, inseparáveis das atividades econômicas.” Conforme Morin para que se compreenda os problemas essenciais do mundo é preciso “mobilizar o todo”, ou seja, todas as áreas do conhecimento devem cruzar umas com as outras. Pois tudo está interligado. No âmbito individual, cada ser humano deve perceber-se como parte do todo, não como um observador apenas. Deve entender que não é o centro do mundo, mas um integrante dele. Para que isso ocorra, no entanto, segundo o sociólogo, é necessária uma reformulação universal do pensamento.
       Muitas causas dos desequilíbrios sociais estão ligadas às formas de governança e divisão dos bens. Sacrificam-se os recursos ambientais para a satisfação dos desejos de uma minoria. Enquanto a maioria desfavorecida padece pelos quatro cantos do planeta. Entretanto, quando a natureza decide se pronunciar, os homens do poder, da política, da economia, da tecnologia tornam-se pequenos e pouco podem fazer para detê-la. Assim, os especialistas podem prever a chegada de tsunamis, furacões, terremotos, secas, inundações, mas não conseguem impedir que eles sejam devastadores. E, claro, que sempre quem paga o preço mais alto é a população mais carente. E é nesse sentido que os governos deveriam agir. Primeiramente, inserindo as populações mais pobres nos planos econômicos. Consequentemente, a partir desta inserção muitas questões que assolam o mundo seriam resolvidas.
Todavia, pensando de forma pessimista sobre a natureza humana, seu caráter exploratório e sua transformação interior quando imbuído de poder, chega-se a conclusão de que o homem dificilmente abrirá mão de seus interesses pessoais em prol dos interesses comuns. Por outro lado, ainda há esperanças. Basta pensar que a vida é uma constante de transformações. Talvez, em um futuro longínquo, a reforma do pensamento citada por Morin realmente ocorra e as novas sociedades experimentem uma forma de existir menos injusta.

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Referências Bibliográficas
Quase 870 milhões de pessoas no mundo estão subnutridas – novo relatório sobre a fome
Visualizado em 25/11/12 – 19h
“As principais causas da fome na África” – visualizado em 24/11/12 – 14h
“Why 2013 will be a year of crisis” – “Por que 2013 será um ano de crise”
Visualizado em 24/11/12 – 15h



[1] Documentário  “The Soviet Story” (A história da união Soviética) – 2008. Dir. Edvins Snore
[2] Respectivamente - Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura; Fundo Internacional de Desenvolvimento agrícola; Programa Mundial de Alimentos.
[3] Consultor sênior de Finanças e Governança Corporativa da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
[4] Coöperatieve Centale raiffeisen-Boerenleenbank BA – A global leader in Food and Agri financing and in sustainability-oriented banking
[5] Texto produzido pelo Departamento de Informação Pública das Nações Unidas.
[6] Sociólogo francês – um dos principais pensadores da Teoria da Complexidade