sexta-feira, 30 de novembro de 2012

PESSOAS INVISÍVEIS

Há milhares delas. São homens e mulheres que, por diversos motivos, deixam para trás a casa, o emprego, a família e vão viver nas ruas da cidade


Eles estão espalhados pelas praças da cidade de São Paulo. Dormem pelas calçadas. Modificam as paisagens. Estão expostos aos mais variados tipos de violência. Sofrem com o frio, o sol, a chuva. Aos olhos da sociedade, das pessoas que passam apressadas em direção a seus trabalhos, são invisíveis. Eles são os moradores de rua. “De rua não, de calçada. Na rua o carro pega a gente”, diz, com um sorriso desdentado, um morador de rua ao lado de dois amigos nas mesmas condições - vivem amontoados pela Praça da Sé. Ele não quis se identificar. 

O parágrafo único do Decreto Federal nº 7.053/09 conceituou a população em situação de rua: “grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”.

São princípios do Decreto: “respeito à dignidade da pessoa humana; direito à convivência familiar e comunitária; valorização e respeito à vida e à cidadania; atendimento humanizado e universalizado; respeito às condições sociais e diferenças de origem, raça, idade, nacionalidade, gênero, orientação sexual e religiosa, com atenção especial às pessoas com deficiência.”

Na prática esses princípios ainda não funcionam. De acordo com uma pesquisa sobre a “População em situação de rua”, realizada pela Fundação Instituto de Pesquisa Econômica (FIPE), em 2009, o município de São Paulo está entre os mais preconceituosos do País. Na visão dos entrevistados a solução para sanar tais problemas seria retirá-los das ruas e colocá-los em instituições. Além disso em relação à violência, a pesquisa apurou também que os moradores de rua na cidade estão entre os que sofrem maior violência; seja devido a drogas, seja por parte dos órgãos responsáveis pela segurança pública dos governos estadual e municipal ou violência física dentro do próprio grupo.

>>ALEMÃO

“Tem muita gente que tira muitos anos numa cadeia, preso porque roubou um pacote de arroz. Eu não nasci para isso, ao menos, a minha grana eu ganho, é limpo.” Quem afirma é Antônio Hercolino Lima, 52, o Alemão, como é conhecido no bairro Paraíso, onde vive há 12 anos. Alemão mora na rua, mas tem trabalho. É carroceiro. Ele passa o dia recolhendo lixo reciclável para vender em outro bairro, no Glicério. Puxa todos os dias, por oito quilômetros, sua carroça abarrotada de recicláveis; quatro de ida e quatro de volta. Alemão diz que aquele trabalho foi o único que encontrou. Estava na rua. Precisava de um meio para sobreviver. O trabalho de Alemão não é fácil e ele ainda tem que ouvir pessoas fazendo piadas sobre sua condição. “Tem gente que ofende. Diz nunca ter visto um burro de dois pés puxando uma carroça, mas eu tiro de letra”, conta resignado. Quando o assunto é a família, Alemão muda a postura. Desvia os olhos vermelhos e inchados - por conta do alcoolismo. “Praticamente eu optei por me separar um pouco da família, mas eu tenho contato com eles”, assegura e, sem querer prolongar a conversa, fica em silêncio. Alemão é um entre os milhares de moradores que, solitários ou em grupos, habitam as calçadas da cidade.Em 2011, a Prefeitura de São Paulo realizou o Censo da População em situação de rua. O levantamento demonstrou que, do total de 14.478 pessoas, 6.765 vivem nas ruas e 7.713 em abrigos. A quantidade de moradores de rua aumentou de modo proporcional ao aumento da população, em relação ao levantamento feito em 2009, que apontou 13.666
pessoas.

>>UMA OPORTUNIDADE

No mapeamento feito pela pesquisa, constatou-se que do total de moradores em situação de rua, 26% são mulheres, sendo que 12% vivem nas ruas e 14% entre acolhidos. Neste sentido, a Toca de Assis realiza, há doze anos, um trabalho de resgate dessas mulheres. Busca reinseri-las na sociedade. Conforme a irmã Lívia Maria do Divino Pastor, 36, o trabalho é complexo. O local de ação é na Praça da Sé e no Parque dom Pedro. De acordo com o recenseamento, no centro, é onde se concentra a maior parte dos moradores em situação de rua do município, 53,3%. A Pastoral de rua da Toca de Assis chega pela manhã e fica durante todo o dia. Para ganhar a confiança das moradoras de rua leva alimentos, roupas e palavras do evangelho. Muitas são arredias, desconfiadas. Outras têm problemas psiquiátricos. Algumas querem contar suas histórias de vida e outras nem sabem quem são. A maioria não possui documentos. Nestes casos, as irmãs recorrem ao Ministério Público e muitas vezes conseguem resolver essa parte burocrática.

Vera Lúcia Alves dos Santos é uma ex-moradora de rua que foi resgatada pelas irmãs da Toca de Assis. Por trás dos óculos, um olhar distante. Com um leve sorriso no rosto ela responde às perguntas. Confunde-se no sobrenome, não sabe se é Santos ou Nascimento. Irmã Lívia a ajuda a lembrar-se, assim como a idade. Ela tem 54 anos. Vera também não se lembra por quanto tempo morou nas ruas de São Paulo. Ela diz que saiu de casa em um dia de chuva, ficou andando pela rua e nunca mais voltou. Vera é de Cruzeiro, no Vale do Paraíba. Veio parar na Praça da Sé. Ela tem dois filhos, Reginaldo e Olívia. Há muito perdeu o contato com eles. Vera Lúcia não esquece os dias e noites de chuva pelos quais passou. “Eu dormia na chuva. A chuva caindo e eu dormindo”, lembra.

Na casa, Vera mora com as irmãs e outras seis acolhidas. Mulheres que como ela vivenciaram a desumanidade das ruas e agora experimentam uma nova vida. Lá, cada uma tem uma ocupação. Arrumar a casa, lavar louça, roupas, cozinhar. E quando chega a noite, de banho tomado e corpo alimentado, têm um lugar para dormir. “Infelizmente, não podemos ajudar todas as pessoas, mas a gente tenta fazer o máximo possível”, lamenta irmã Lívia. Vera Lúcia foi contemplada. Está na casa há um ano. “Minha vida melhorou bastante depois que cheguei aqui”, finaliza, sem desfazer o sorriso.

Para irmã Lívia, a sociedade rejeita essas mulheres e a rua as desfigura. “Muitas perdem a identidade. Não se sentem humanas. Não conseguem sentar-se em uma mesa para comer. Infelizmente vivenciamos essa realidade”, relata. A irmã acrescenta que a maioria delas não está na rua porque quer. Muitas estão lá porque sofreram traumas. Porque sofreram violência sexual dentro de casa, pelo pai, por um parente. Porque se envolveram com álcool e drogas. Tem gente que já é parte da rua. Não consegue mais sair daquela situação. Conforme irmã Lívia essas mulheres foram muito maltratadas pela vida e por outras pessoas e, por isso, quando alguém se aproxima com a intenção de  ajudá-las, acreditam que irá maltratá-las também. Irmã Lívia define o trabalho da Toca de Assis: “Não é questão só do físico, mas atenção e ajuda espiritual também. Tentamos dar dignidade e amor a essas mulheres, mostrar que tem alguém que se importa com elas”.

>> NA RUA

Deitada em uma calçada atrás do Pátio do Colégio, sob o sol castigante do meio - dia, Catia Elizabete de Almeida parece alheia ao que acontece ao redor. Prefere ficar ali, gosta do sol, diz que já passou muito frio. Ela tem 51 anos e está na rua há dez. Sobre o motivo que a levou a morar ali, ela não sabe dizer. Já trabalhou em banca e entregando folhetos na rua. “Casa eu nunca tive, moça. Já morei em albergue. Eu já tive família, mas agora não tenho mais”, conta com certa inquietude. Nesse momento Cátia fica incomodada e muda de assunto. Encolhe-se ainda mais contra o muro. Fica nervosa. Não quer mais falar. Argumenta que está com a tireoide atacada, que não está nada bem da cabeça. “Minha cabeça dói, eu não posso falar”, finaliza. A entrevista acaba ali.

Em outro ponto da Praça da Sé, outra Vera Lucia, sem sobrenome. Diz que é só Vera Lúcia mesmo. Ela arruma um carrinho desses de feira. Está cheio de roupas. “Eu ‘tô’ com essa ‘tiboia’”, refere-se à tipoia que trás no braço direito. Segundo ela, há dois anos o quebrou, quando caiu de uma escada e ainda não tinha sarado. Ela conta que teve o cobertor roubado durante a noite. Sobre a idade, com um sorriso, fala que tem 45. Aparenta ter bem mais. Vera Lúcia mostra a perna esquerda,  enorme. Ela está com trombose. Diz que sente muita dor. Vera Lúcia é de Perus, município de São Paulo. Ela se lembra que o ex-marido tentou matá-la e começa a chorar. Pede desculpas por contar seus problemas. “Eu morava nos fundos. Ele aceitou que eu morasse lá, mas quando ele bebe, aí ele vira bicho. Ele também começou a usar pedra”, relata. Ela conta que tem dois filhos. “Minha filha, a Paloma é modelo. Você conhece ela? É, e eu sou avozinha. ‘Tô’ com saudade dos meus netinhos”, desabafa. Na rua, realidade e fantasaia se misturam.  

>>ONG

“Não podemos simplesmente abandonar, fechar os olhos para essa realidade. Se eu tenho duas camisetas, por que uma não pode ser de alguém que precisa?”, indaga Ana Paula Hipólito, 30, consultora de viagens e fundadora da ONG Cobertor do Bem, que realiza um trabalho de doação de roupas e distribuição de sopa, na Praça da Sé, no Minhocão e no Pátio do Colégio. No mês de outubro, a Prefeitura cogitou proibir os sopões e gerou polêmica entre as ONGs que praticam essa ação. Um dos motivos da proibição seria a sujeira, o lixo deixado nas ruas pelos moradores, depois de consumir o alimento. Segundo Ana, além disso, houve, um caso em que um grupo distribuiu comida estragada. Dois moradores de rua morreram por intoxicação. “Nosso trabalho é ilegal, se a polícia pegar vai todo mundo preso”, revela.

Para o produtor de eventos, Wilson Lira, 46, membro da ONG, a sociedade finge não ver o morador de rua, trata-os como lixo que deve ser recolhido de suas calçadas. “Muitas dessas pessoas não se sentem nem gente mais”, conta. Segundo ele, há pessoas que criticam o trabalho da ONG. Quem critica vê esses projetos de distribuição de alimentos e agasalhos como algo negativo. Alega que essas ações os deixam mal-acostumados. Incentivando-os a permanecer sob aquela condição. “Mas se for partir desse princípio ninguém faz nada”, acredita.

Outro membro da ONG, o publicitário Sebastião Costa, 47, diz que o trabalho não é fácil e para realizá-lo as pessoas devem estar engajadas. “Tem que estar com o coração zerado. Não estamos ali para julgá-los, mas para ajuda-los”, afirma, referindo-se ao fato de que não sabem, ao certo, quem são as pessoas as quais prestam auxílio. Se são merecedoras ou não. Se batiam nas esposas, nos filhos. Se maltratavam animais. Sobre o fato de muitos moradores preferirem às ruas aos albergues, os membros da ONG são unânimes. Eles não gostam de ter horários nem de dormir com pessoas desconhecidas. Além do mais, ocorrem roubos de seus pertences. Nas ruas eles se fecham em pequenos grupos e acabam, de certa forma, se protegendo.

No artigo 7º do Decreto Federal citado, a Política Nacional para a População em Situação de Rua objetiva: “assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as políticas públicas de saúde, educação, previdência, assistência social, moradia, segurança, cultura, esporte, lazer, trabalho e renda”. Tais objetivos, na cidade de São Paulo, por enquanto só vigoram no papel. 

Um comentário:

  1. Agradecemos pela materia & espaço para podermos falar um pouco sobre o nosso projeto & campanha COBERTOR do BEM, bem como um pouco sobre esse mundinho triste & sofrido destes que sobrevivem pelas r.u.a.s das cidades sem o minimo preciso para isso & que a sociedade & governo sabem que estao la, mais fingem nao nota los....

    will lira

    projeto & campanha Cobertor DO bem.

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